sábado, 6 de agosto de 2011

Moça Beatriz

“Perder-me em teus traços, incomparável beleza;
morrer em teus braços, terrível frieza”.

Como são belos os dias no sertão quando as manhãs descobrem-se lentamente, enquanto o sol convida a sair!
A vida no campo sempre se apresentara mansamente para a doce Beatriz, menina nascida e criada na fazenda. Linda moça dos cabelos e olhos castanhos, que jamais teve qualquer aborrecimento. É difícil encontrar no mundo beleza igual à de Beatriz – na Bahia, com certeza, não há. Filha de fazendeiro rico, seu Antônio Ferraz, quase um coronel, político de grande prestígio no interior, e de dona Cândida, mulher de princípios cristãos muito honestos, Beatriz saiu aos dois: tinha o enorme carisma do pai e os mesmos valores da mãe.
Aos domingos, a jovem sempre vai à missa, aliás, única ocasião em que costuma deixar a fazenda. Vaidosa, passa horas escolhendo o vestido o qual usará. Decidida, não gosta que dona Cândida, por mais gentil que seja, opine em sua escolha. Apesar disso, no restante dos dias, Beatriz é uma moça simples, recatada e muito gentil com todos, principalmente com sua mãe, a quem dedica grande carinho.
Não há muitos compromissos para Beatriz na fazenda. Na verdade, ela possui todo o tempo do mundo disponível para si mesma. A maior parte gasta com música e leitura – Tchaikovsky, Chopin, Beethoven, Nietzsche, Foucault, Pessoa. Noutras oportunidades, entrega-se à contemplação da natureza sertaneja, caminha por antigas trilhas na mata, sozinha, a escutar os pássaros e a sonhar.
Certa vez, num desses passeios pela tarde, moça Beatriz caminhou até um pequeno olho-d’água, que fica um tanto distante da sede da fazenda. Lá, podia ouvir o melodioso canto das pequenas aves silvestres e o leve murmurinho das águas ao passo que deixava pequenas gostas cair por sobre seu rosto para refrescar-lhe. Os raios de sol dispersavam-se por entre as gotículas, recaindo sobre a pele extraordinariamente branca de Beatriz, como uma pintura em porcelana.
A menina poderia passar horas ali, lucubrando, sem se preocupar com o tempo ou com qualquer outra coisa – estava completamente absorta. Meditava provocada por poesias que lera naquela manhã. Não conseguia parar de pensar acerca da infinidade e da verdade. Seus pensamentos perdiam-se no tempo e no espaço; ainda assim, isso não a impediu de notar um leve, porém, estranho movimento na mata. Beatriz disfarçou o susto e continuou com o que estava fazendo. Mais que isso, agora tinha mais desenvoltura, pois supôs que havia alguém escondido entre os arbustos. Imaginou que estava sendo observada.
Com extrema delicadeza, retirou um pequeno laço branco que prendia seus cabelos, fazendo um suave movimento para soltá-los. Em seguida, pôs com cuidado o lindo enfeite por sobre as pedras, de modo que ficasse bem preso e amostra. Durante algum tempo, permaneceu ali, imóvel, até que se levantou e começou a refazer o caminho de casa sem olhar para trás. Assim que cruzou as primeiras árvores, parou, procurou um lugar para esconder-se e ficou a observar. Ansiosa, não parava de tremer – morria de medo.
Pouco tempo depois, tal qual um felino à espreita, um homem surgiu por entre a folhagem, já bem próximo ao olho-d’água. Beatriz esforçou-se para enxergar seu rosto. O desconhecido apanhou das pedras o lacinho branco e levou-o até os lábios. Nesse momento, a moça conseguiu reconhecer aquele homem. Seu nome é Sócrates, filho de um dos empregados da fazenda. Ele também morou lá enquanto garoto, mas foi embora rapazote para tornar-se policial. Quando Sócrates deixou a fazenda, Beatriz ainda era uma criança. Os dois nunca se falaram. A garota sabia que ele tinha regressado, mas não o vira até então. Segundo diziam, ele havia sido expulso da corporação. E foi por força da vontade do coronel Antônio Ferraz, passando por cima das recomendações de dona Cândida, que ele voltou a morar na fazenda.
Prevendo que logo iria escurecer, Beatriz virou-se devagar e, tentando não fazer muito barulho, pôs-se a correr em direção à sede. O desespero tomou conta de seu peito. Aquelas trilhas nunca foram tão sinuosas, a casa nunca esteve tão distante, e seus pés nunca estiveram tão pesados, mas, enfim, chegou.
A mesa de jantar já estava posta quando Beatriz passou por dona Cândida. A pequena nem percebeu a mãe, tão apreensiva que estava.
– Aonde você vai, menina? O jantar já está servido! – Disse a cuidadosa mãe. Beatriz nada ouviu, seguiu para o quarto e trancou-se. Dona Cândida foi atrás.
– Menina, abre essa porta! Você não ouviu o que eu te falei? A comida está na mesa.
Por algum momento, a jovem não disse uma única palavra, teve a impressão de que as paredes de seu quarto iriam desmoronar-se sobre sua cabeça. O chão, sempre tão firme, estava movediço. E não encontrava oxigênio suficiente para manter-se de pé. Iria desmaiar. Antes que chegasse a perder a consciência de fato, no entanto, acalmou-se. Abriu a porta devagar. Dona Cândida estava de pé, em frente a ela. Beatriz olhou para sua mãe como se duvidasse de sua existência, como se duvidasse que a mãe estava realmente lá. Na verdade, duvidou de tudo, inclusive de si mesma. “O ato de abrir os olhos pode ser a ilusão de um ritual para nos fazer acreditar na realidade” – pensou.
Em seguida, reuniu todas as suas forças e, enfim, deu um longo suspiro. Já completamente reconfigurada, perguntou com exagerado entusiasmo:
– O que preparou dessa vez, mainha? Estou morrendo de fome!
Não, não estava sendo sincera. Beatriz não tinha o menor interesse por qualquer que fosse a refeição naquela noite. Comeu o menos possível, estava nervosa demais para cear. Nem esperou que seus pais terminassem, logo pediu licença e entrou para o quarto novamente. Ela não conseguia parar de pensar no encontro de há pouco.
Percorreu a estante do quarto com os olhos e retirou de lá um pequeno livro de poesias – o mesmo que lera nas noites anteriores. Retomando sua leitura, ficou a refletir sobre a vida durante horas. Mais uma vez, provocada por aquelas mesmas ideias. A infinidade do tempo, pensava somente na infinidade do tempo, que retardava a aurora. Por fim, superada pelo cansaço, adormeceu antes que o dia raiasse.
Era hábito todos sentarem-se à mesa para fazer as refeições. E, assim que terminou de preparar o café da manhã, dona Cândida, como de costume, foi ao quarto de Beatriz para acordar a pequena.
– Acorda, Bia. Você sabe que o seu pai não gosta de tomar o café da manhã sem você – disse com mansidão.
– Eu sei – respondeu a moça. – Já tô indo.
A noite de sono, ao que pareceu, fez muito bem a Beatriz, pois que ela acordou completamente diferente. Longe de estar preocupada, estava animadíssima, tal como se nada tivesse acontecido, como se aquela fosse uma manhã igual a qualquer outra do sertão. E, como todos os dias do sertão, tudo estava ensolarado.
Beatriz tomou o café da manhã demoradamente, conversou sobre diversos assuntos, falou muito a respeito da missa do domingo próximo. Quando terminou, a moça correu para o banho, onde passou mais tempo ainda. Em seguida, foi para o quarto novamente. Abriu o guarda-roupa e estendeu sobre a cama o vestido branco que estava pensando em usar no domingo – era o que ela mais gostava, ainda que não fosse o mais novo. Moça Beatriz cuidou dos mínimos detalhes na frente do espelho. Por fim, pôs um lacinho vermelho no cabelo e perfumou-se. Um aroma dionisíaco!
A menina deixou o quarto apressada em direção ao terreiro. Já fora, pegou o regador e começou a molhar algumas plantas. Antes de terminar, porém, deu umas voltas ao redor da casa para, em seguida, abandonar o regador. Algum tempo depois, pôs-se a caminhar mais ao longe da sede, seguindo para a mata, rumo ao olho-d’água.
Enquanto caminhava, Beatriz não notou qualquer sinal de que estava sendo seguida. Ao contrário, tudo lhe parecia tão ou mais calmo do que de costume. Os pássaros ensaiavam seus cantos; e as borboletas, suas cores. Antes que se desse por conta, a pequena já podia ouvir o murmurar das águas do pequeno córrego. Mas, assim que avistou o olho-d’água, sentiu um arrepio. O tal Sócrates lá estava, como que a esperando, parado. Naquele momento, por um breve instante, Beatriz hesitou, estava congelada, sentiu o coração martelar no peito. As pernas tremiam descontroladamente.
Aqueles poucos segundos estenderam-se infinitamente. A moça fitou os olhos do homem. Não parecia homem. Obcecado, lembrava mais um animal selvagem. Roupas simples cobriam-lhe o corpo, mas, ainda assim, era possível notar sua robustez. E, em meio ao terror, sem que dissesse uma única palavra, a jovem usou todas as suas forças para correr desesperadamente mata adentro. Sócrates a seguiu imediatamente.
O corpo esguio, apesar de sua aparente fragilidade, conferia agilidade à moça. Seus pés lançavam-se contra a relva, enquanto arbustos cortavam delicada pele. O desespero não permitiu que Beatriz sentisse qualquer dor, pois corria por sua vida. O homem, ao contrário, era mais animalesco e aproximava-se com assustadora velocidade. Aos poucos, ficou claro para a garota, não havia como escapar. Ela seria capturada.
Inesperadamente, para a surpresa de Sócrates, Beatriz parou e o encarou. Nesse momento, ele também parou. Os dois entreolharam-se por alguns instantes. Ambos estavam ofegantes. A menina, bem mais do que ele. O delírio da caçada fez com que o homem se detivesse frente àquela visão. Moça Beatriz estava imóvel diante daquele adversário, cuja vontade implacável o tornara irresistivelmente poderoso. Cansada da corrida, seu pulmão ardia e seu corpo tremia.
Nesse momento de trégua e de hesitação, a jovem levou as mãos aos cabelos e, devagar, retirou novamente o laço que os prendia. Dessa vez, atirou-o ao chão. Fez ainda mais um movimento, deixando seus cabelos bem soltos. Sócrates, por sua vez, assistiu a tudo isso vidrado, enlouquecido de paixão.
De repente, moça Beatriz fez um rápido movimento com seu corpo, como se fosse tentar escapar. De imediato, Sócrates começou a correr, porém, parou ao ver que a garota só o havia fintado. Ele sorriu. Em seguida, a moça repetiu o movimento – agora, para o lado oposto. Como um louco, Sócrates se pôs a correr, mas, ao perceber que se tratava de outra finta da garota, tentou voltar mais rápido do que poderia. Sua pressa fez com que escorregasse, tamanho era seu descontrole. Dessa vez, foi ela quem sorriu.
A menina aproveitou a oportunidade para retomar a fuga, adentrando mais profundamente na mata. Tomado pela fúria, Sócrates rosnava. Já sem tanta pressa para, reiniciou a caçada. A moça, a cada passo, embrenhava-se mais e mais na mata. Não havia para onde ir. Naquela direção, não haveria de encontrar qualquer refúgio, ninguém que pudesse socorrê-la, nem mesmo ouvi-la. Assim, os dois recomeçaram a corrida mortal.
Era com extrema dificuldade que Beatriz conseguia passar pelos galhos. A floresta, como que torcendo contra a jovem, ia se fechando mais e mais. Sua pele frágil sofria com o flagelo. O selvagem Sócrates, no entanto, já não se incomodava com tal. Ambos correram muito até que as forças da menina fossem, enfim, superadas pelo desejo inabalável de seu perseguidor. Não havia mais como continuar, seu coração parecia que iria explodir. Naquele instante, Beatriz parou e se virou na direção de Sócrates. Desta vez, ele não hesitou, atirando-se por sobre a garota. Os dois caíram no chão. Sim, ele a havia capturado e, agora, não pensava noutra coisa, senão em seu prêmio.
Deitado por entre as pernas da pequena, ergueu-se um pouco para contemplá-la. Então, pôde ver os cabelos castanhos de moça Beatriz esparramarem-se pelo chão, bem como sua pele extremamente branca corar devido ao esforço da corrida. Seu cheiro incrivelmente delicioso exalava pelo ar. Completamente entregue, ela o olhava fixamente, deixando-se amolecer. Sócrates podia sentir o peito arfante de Beatriz enquanto suas mãos sujas percorriam seu corpo.
Excitado, nervoso, ele estava tomado pela paixão. Inebriado, enlouquecido. Em seu furor, despia o busto da moça e, no instante em que vislumbrou seus seios, sentiu um arrepio – pois que nada na criação poderia ser mais belo. Havia uma certa expressão mansa em sua fisionomia. De tal modo que se aproximou delicadamente para beijá-los quando, de repente, foi tomado por uma dor lancinante. Sócrates sentiu como se um terrível animal tivesse fincado suas presas na parte posterior de seu dorso, próxima ao pescoço.
Beatriz o tinha atacado com um punhal, fincado sua lâmina profundamente e girando-a em seguida.
A morte, com certeza, não combina com dias tão belos, e a vida parece não aceitar abandonar um corpo tão repentinamente – então, grita e chora. O sangue jorrava ao passo que ele se contorcia de dor. A moça, sem hesitação, segurou os cabelos dele e o apunhalou mais algumas vezes. Aquele líquido vermelho, quente e viscoso se derramava por sobre o rosto de Beatriz, banhando seu corpo.
Ela permaneceu ali, calada, até que a última gota rubra se derramasse. Em seguida, soltou uma terrível gargalhada antes de engasgar com o sangue. Estava extasiada! Acariciava os cabelos de sua vítima, chegando mesmo a lamber seu rosto. Pensou que teria sido muito mais prazeroso se a tivesse deixado penetrar. Até insinuou alguns movimentos obscenos com o corpo já sem vida daquela infame criatura – como se simulasse o ato sexual. Por fim, deu-se por satisfeita. Empurrou o cadáver de cima de si e levantou-se. Beatriz estava completamente descomposta. Seu vestido não passava de farrapos. Mas, com espantosa serenidade, começou a caminhar em direção ao olho-d’água. Tranquilamente, retirou sua roupa e deitou-se no pequeno córrego, deixando a água banhar seu corpo. Ali, moça Beatriz retomou suas lucubrações de onde havia parado no dia anterior. As gotículas de água, os raios de sol, a brancura da pele, o vermelho do sangue...





[1] Escrito por Ciro Prates.

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