sábado, 19 de dezembro de 2015

Crônicas da Prisão

Diário de um cativo.
Primeira linha:
Preso e vigiado, como sobreviver?
Segunda linha:
Diariamente, seja um fugitivo.

Quando se está cercado
e não lhe resta outra opção,
é preciso aprender o quanto antes
as regras da prisão.
Nada pode ser ignorado.

Vá a todos os lugares,
observe atentamente.
Dissimulando seus pensamentos,
ninguém lê sua mente.
Não evite os olhares.

Mesmo indesejáveis,
aprenda a iludi-los –
como um mágico,
use truques para distraí-los –
porque são inevitáveis.

O castigo é certo
se tudo não for perfeito,
pois há sempre alguém vigiando
em busca de qualquer malfeito.
A fiscalização é de perto,

e a patrulha nem sempre é notada.
Misturados entre os presos, disfarçados,
pode ser qualquer um,
amigos, namorados.
Só a polícia atua fardada.

Por isso, atenção.
Não perca a calma.
Se o corpo é prisioneiro,
mantenha livre sua alma.
A fuga é uma invenção.

E a prisão? A prisão é uma soma,
o resultado de tudo o que se dá,
de todos os acontecimentos históricos,
de todos os conflitos que há.
É tudo aquilo que nos toma,

que nos separa
ou que nos destrói.
De outro modo, se lhe interessa,
se torna aquilo que nos constrói
ou que nos repara.

Nela, tem o que é meu
e o que não deve ser.
É tudo o que nos cerca.
A prisão é você.
A prisão sou eu.

sexta-feira, 21 de agosto de 2015

quinta-feira, 23 de abril de 2015

Senhora do Sangue

Eu deveria ter sido mãe.
Deveria estar criando meus filhos
– os Filhos de Regna.
Pois disseram que era bonita demais,
que teria lindas crias,
que jamais estaria no campo de batalha.
Tolos!
Estavam enganados.
Tal não seria meu destino. 
Arranquei minhas orelhas
quando completei doze anos
e dei-as de comer aos cães.
Preferiria morrer
a ter de me deitar com um homem.
Mutilada,
não iriam sequer olhar para mim.
Tornei-me, ao contrário, uma guerreira
– escolhida pela própria Rainha Negra,
a maior de nosso clã.
Desde então,
meu caminho é a espada.
Regnária é uma cidade de mulheres,
lar das Senhoras do Sangue,
as mais temidas espadachins do mundo.
Aqui, as moças conhecem apenas dois caminhos:
um leva ao berçário;
o outro, ao campo de batalha.
Meninas são treinadas desde cedo
a fim de se transformarem em lutadoras,
herdeiras da glória e da honra de Regna.
Os meninos, inversamente,
são ensinados a obedecer.
E, aos doze anos, são vendidos
ou trocados por outros escravos,
criaturas condenadas a servir até a morte.
Violentados, acorrentados, castrados.
Como eu disse, deveria ter me tornado mãe,
Mãe de Ferro,
como são chamadas as escolhidas
para se deitarem com os escravos
e conceberem filhos.
Todavia, nasci para ser uma Senhora do Sangue.
Em poucos anos,
já havia matado mais inimigos do que qualquer outra.
Fiquei conhecida como Ira,
a Rainha Vermelha.
E foi justamente em resposta às minhas conquistas
que eles vieram.
Nossas muralhas jamais haviam sido derrubadas,
mas, desde que os reinos do Leste formaram uma aliança,
nossas defesas têm sofrido grandes baixas.
A cidade está em chamas agora.
Não posso ver nada além da fumaça e da poeira.
Antes de o sol nascer,
éramos cerca de dez mil guerreiras,
sitiadas por um exército de cem mil.
Cerco que já dura mais de duas luas.
A escassez tem nos castigado
mais do que as flechas inimigas.
Comemos nossos cavalos
e muitos dos escravos.
O restante degolamos e queimamos.
Não há mais nada aqui além da morte.
É uma grande festa!
Minhas costelas estão quebradas.
Meu abdômen, perfurado há dias,
está apodrecendo.
Já nem sei como ou quando isso aconteceu.
Foram tantos golpes!
Meus músculos latejam,
e a febre consome o que me resta de forças.
Sou um cadáver.
Ouço gritos ainda por toda parte,
no entanto, não vejo um único rosto conhecido.
Em meio à fumaça e à poeira,
aproveito o caos para percorrer os corredores
até o salão principal.
Gostaria de morrer diante da estátua de Regna.
Mas não por uma espada!
Odiaria ser vencida por outro espadachim.
A espada sempre esteve ao meu lado,
sempre foi parte de mim.
Peço à Deusa para que isso não aconteça.
Sigo caminhando até que,
de súbito, mais um inimigo aparece.
Antes, porém, que me visse,
ataco sua perna,
decepando-a com um único golpe.
Ele grita como um porco,
mas não tenho paciência para sacrificá-lo.
“Com sorte, seus berros servirão de isca”, pensei.
Logo aparecem outros.
Desajeitados, medrosos.
O primeiro é estripado;
o segundo, derrubado.
Enquanto rasteja,
parto seu crânio.
Por azar, minha espada fica presa.
Um breve vacilo e um deles me agarra.
Miserável forte!
Arrebenta ainda mais minhas costelas
atirando-me ao solo.
Com a queda, perco meu elmo.
O gorducho me reconhece
 vejo o terror em seus olhos.
Aproveito sua hesitação
e me ergo calmamente.
Tusso um pouco mais de sangue.
O sujo empunha um machado;
eu, um punhado de areia.
Coitado!
Não tem a menor chance.
Cego por um segundo,
salto sobre ele
e mordo sua cara.
Arranco metade de seu rosto em um piscar de olhos.
Mais gritos.
Continuo a avançar.
Fumaça, poeira, febre
e aquele maldito cheiro de carne podre,
da minha carne podre.
Há tantos corpos pelo chão!
Mas nenhum fede tanto assim,
não ainda.
Desço pelas grandes escadarias,
estou próxima à sala do altar.
Entre uma dezena de criaturas mutiladas,
desfiguradas, sem vida,
uma em específico me faz gargalhar:
a Rainha Negra está morta.
Apostamos para ver quem iria primeiro.
Ganhei!
Fico com a sua espada.
Éramos dez mil antes de o sol nascer.
Agora, mal posso ouvir os sons do conflito.
Está chegando ao fim a batalha.
A esta altura,
minhas irmãs mais novas estão todas mortas.
Eu também já vivi demais.
Por Regna!
Quem quer viver mais do que dezessete anos?
Vejo soldados ao longe.
Gritaria para desafiá-los se pudesse.
Mal consigo caminhar.
Minha barriga está necrosada,
meus músculos não me obedecem,
não paro de tossir sangue
e esses parvos são incapazes de me matar.
Com muito esforço,
finalmente, alcanço o salão principal.
Para minha surpresa,
diante da estátua de Regna,
está o miserável rei que comandou o cerco desde o início.
Todos olham para mim
enquanto aponto minha espada para o bastardo.
Devagar, caminho até o centro do recinto
sem ser amolada por nenhum de seus lacaios.
Sem pensar muito,
retiro minha armadura.
Aquelas placas amassadas estavam me torturando.
Agora, sim!
Pronta para morrer.
“Então, as ovelhas decidiram se rebelar!
E o que farão agora, eunucos,
que encontraram uma mulher de verdade?”
Nenhum soldado se atreve a dizer uma única palavra.
Apenas Leorális, o senhor da aliança, se aproxima,
lentamente.
Parece não acreditar no que vê.
Até hoje, só ouvira falar de mim.
Agora, está diante de seu maior pesadelo.
Erguendo sua espada, disse:
“Ira, a Rainha Vermelha,
a última das Senhoras do Sangue,
seu reinado de horror termina aqui.
Este é o fim das Filhas de Regna”.
Bravata!
Um verme daqueles jamais ousaria dizer isso face a face
– ainda mais na presença da própria Regna –
se eu já não estivesse com cara de defunta.
Em resposta, cuspo no chão.
Leorális toma coragem
e tenta me surpreender.
Defendo seus golpes facilmente.
Tolo previsível!
Parece um aprendiz que luta contra sigo mesmo,
fantasiando adversários.
Maldito!
Nem é um guerreiro de verdade.
É apenas um homem.
Mas a febre aumenta a cada novo esforço.
Minhas energias estão no fim.
E, depois de uma série de movimentos,
sinto fortes ânsias de vômito.
A cidade está em chamas,
porém, meu corpo congela.
Cerro os dedos,
aperto ainda mais o punho da espada,
me preparo para o desenlace.
Assim que Leorális avança de frente,
finjo uma esquiva,
mas finco meus pés no chão.
Uso minha mão esquerda
guiando a direção de sua espada
para a minha barriga.
Avanço em seguida.
Com a lâmina enterrada em minhas vísceras apodrecidas,
seu pescoço fica a um braço de distância.
Sua alegria não dura nem um segundo.
Quando percebe a trapaça,
já é muito tarde.
Rosnando, giro minha espada
e decepo metade da cabeça de Leorális.
Os soldados, por sua vez,
ficam atônitos com tamanha atrocidade.
Silêncio absoluto
até os primeiros guardas investirem sobre mim
como lobos famintos.
Atravessam meu corpo com suas lanças.
Glorioso!




domingo, 5 de abril de 2015

domingo, 22 de março de 2015

O ladrão

A serpente guia o ladrão
por ruas lamacentas,
protegendo-o com a escuridão
de noites turbulentas.

Carregando sua adaga afiada,
o ladino o paredão escala
e, com uma única estocada,
o vigia para sempre se cala.

Em algum lugar do castelo,
numa câmara guardado,
há um tesouro tão belo
que breve será roubado.

Os corredores são labirintos
e há armadilhas por todo o lugar,
mas o gatuno segue seus instintos,
certamente, irá encontrar.

Tudo lhe parece ameaçador.
Espectros dançam à sua frente,
sombras projetadas no corredor.
Ilusões da sua mente.

Ambicioso,
sua vontade persiste.
Audacioso,
a tudo resiste.

Sem saber ao certo,
descendo pelos caminhos mais sombrios,
vai chegando cada vez mais perto,
superando os desafios.

Salta o abismo de um fosso.
Agarra-se a uma rocha
sem quebrar nenhum osso.
Acende sua tocha.

Tateia paredes de granito,
procurando uma passagem escondida.
Seus dedos, com cuidado infinito,
descobrem a fechadura há muito esquecida.

A chave que traz consigo,
enferrujada, mas valiosa,
fora roubada de um velho inimigo,
espólio de uma vingança ardilosa.

Uma vez no coração do palácio,
o ladrão tem uma oportunidade única.
Tudo lhe parece muito fácil.
Ele retira sua túnica.

Imerso na escuridão mais profunda,
uma última ameaça o espera.
No canto da câmara imunda,
sente a presença de uma temível fera.

Como saída de um sonho,
uma criatura com traços inumanos.
Avança o monstro medonho.
Emite gritos insanos.

O invasor, hesitante por um momento,
faz uso de sua arma secreta
e, num rápido movimento
com sua lâmina, um veneno injeta.

Fórmula letal
que aprendera ainda criança,
quando brincava com ervas no quintal.
Trágica lembrança!

No chão que agora pisa,
freneticamente convulsionando,
a fera agoniza,
sua boca espumando.

Chegada a hora da vitória,
guardadas de todos os olhares
– o ladino terá sua glória –,
joias aos milhares.

Um imenso baú de madeira,
esta noite, será levado.
Em histórias à frente da lareira,
o ladrão será lembrando.

sexta-feira, 20 de março de 2015

Amantes do ódio

Tolos de convicções absurdas,
de metralhadoras e submetralhadoras,
com vossos mísseis e alvos indefinidos.
Homens de amor ao ódio,
amantes explosivos,
jamais tentais contra mim,
que sou vosso oposto.

Sois pedra.
Sou chuva.
Sois muro.
Sou porta.
Sois sono.
Sou insônia.
Sois espelho.
Sou luz.

E, enquanto vós dormis,
eu caminho.
Enquanto vós sonhais,
percorro trilhas descalço.
E, se me cortais, ó pedras,
sangro para irrigar vossas ideias,
subverter vossa decência,
fazer florescer vossa consciência.

Não, não temos nada em comum,
senão o que escondeis
por detrás de vossas manhas.
Vossa fome saciais com palavras.
Vossa sede, com mentiras.
Minha fome, eu a mato com desespero.
Minha sede, com hesitação
e dança.

Dança. 

terça-feira, 10 de março de 2015

Homenzinho branco triste

Pobre homenzinho branco triste,
que mundo é esse que não tolera mais suas macaquices!
Achacado por mulheres;
assediado por tantos outros homens,
bem posso ouvir seus lamentos:
"Por que ninguém olha pro meu pau?
Olhem pro meu pau.
Ei, olhem pro meu pau!"
- Mas ninguém quer saber de seus órgãos insignificantes.
Ó homenzinho branco tão triste,
que mundo é esse que rejeita o argumento de seus hormônios
e que dessacraliza suas bolas,
e que não cede ao seu desespero!
Grite, homenzinho!
Continue gritando:
"Eu tenho bolas.
E elas são lindas!
Duas bolinhas de carne.
Venham ver todos!"
- Quem sabe, um dia,
você terá todos à sua volta
a olhar para o centro de seu mundo.
Até lá, homenzinho,
continue lambendo seu próprio saco.
Só assim,
preservará a chama de seu culto acesa.
A chama de seu culto,
de seu culto,
de seu largo culto!

segunda-feira, 9 de março de 2015

Pobre borboleta

A cobra,
o sapo,
a aranha
e o rato

iniciaram, de forma mansa,
uma mortal dança.
Saboroso ritual
do mais tenebroso mal.

Bem fundo na escuridão,
a cobra começa o trabalho
com seu traiçoeiro chocalho.
Terrível canção.

O sapo asqueroso
pula, incha, coaxa
no chão pedregoso
(loucos movimentos
de impulsos violentos).

Em seguida, a aranha inicia
sua estranha magia
- tecendo o fio
de seu coração vil.

O rato, a tudo observando,
lentamente vai se aproximando,
percorrendo o labirinto
com seu olhar faminto.

Uma borboleta desgraçada
é trazida como que por encanto.
Fora atraída pelo sinistro canto.

Aprisionada
numa estaca torta
breve estará morta.
Enredada na teia,
será a ceia.

O medo lhe toma;
as asas contrai;
a consciência se esvai.
Entra em coma.

Nada pode fazer,
senão temer
e rezar
para o fim logo chegar
e morrer
sem muito sofrer.

A pior ou a melhor morte
quem determina é a sorte.
E, quando o mal é tal que não se pode evitar,
só nos resta aceitar.

Pobre borboleta!

domingo, 1 de março de 2015

Menos Ar

As paisagens se transformam em pinturas;
as janelas, em quadros.
Não há um só canto sem paredes.
E o meu canto, o meu canto é quase inaudível.

Há menos ar, menos inspiração.
Ainda assim, sinto o vento de uma tempestade.
Pingos d’água.
Ondas de lágrimas.

O sal. O sol. O céu. O seu. O meu. O eu.

Um horizonte de devaneios
emaranhado a tantas certezas.
Costurado por frios fios
de um destino sem clareza.

Não há raios de luz.
Não há salvação.
O desejo é sempre falta.
E a felicidade é uma ideia velha.